Nathália Carmem
Quem, às vezes, não gostaria de fugir pra uma cidadezinha invisível no mapa? Quem, às vezes, não se sente órfão de mãe? Ou de pai? Quem não tem uma irmã-cópia? E quem não tem uma irmã copiada? Às vezes, somos tão egoístas que não percebemos a importância daquilo que é simples, mas fundamental a todos nós: Amor. Quem é que não tem algum tipo de revolta com a vida? Quem é que não fica pasmo quando, acostumado a saber de tudo, se vê diante do inexplicável? Como explicar que aquele lugar tão acolhedor para você, sirva como uma prisão pra alguém? Quem não tem um sonho que todos insistem em dizer que é impossível? Quem não tem Amor no coração? Ou uma dor de coração? Seja ela pelo motivo que for... Quem é que não teve, pelo menos uma vez, um anjo em sua vida? Quem é que, mesmo diante de todas as dificuldades, não se vê obrigado a seguir em frente? Se você se recusa a esquecer e seguir adiante, problema seu. Mas não me atire nenhuma pedra.
Nathália Carmem
Yngrid acabava de sair da aula de dança, estava ofegante, exausta. Chegara à escolinha de ballet às 08:00h e já passava das 14:00h. Acontece que era final de ano, e todo final de ano era igual: os ensaios eram mais demorados, intensos e puxados, por causa da tradicional apresentação de Natal que acontecia sempre, impreterivelmente, na frente da única igreja da pequeníssima cidade de Garrafão.
Sim, Garrafão está dentro daquele grupo de cidades quase invisíveis no mapa, como Tangamandápio, por exemplo. Lá, só há uma igreja, uma praça, um hospital, um colégio, uma sorveteria, um shopping, uma escola de dança... Ah, vem dizer que você não conhece um lugarzinho assim, onde tem de tudo, mas só uma coisa de cada tipo? E mesmo essa igreja, esse hospital, essa escola, são todos pequenos, porque a população é numerosamente pequena. Ou seja, de grande, Garrafão só tem o nome, e mesmo os mais antigos desconhecem a origem deste nome tão controverso.
Yngrid chegara a Garrafão aos 3 anos de idade. Seu pai, que era um cardiologista de prestígio, resolvera morar ali depois de ter perdido a esposa para uma doença rara, numa tentativa de se afastar de tudo o que lhe lembrasse e causasse nele a dor de sua perda. Era difícil, impossível até, para um cardiologista renomado como ele, uma pessoa cética, descrente de qualquer coisa que não fosse cientificamente explicável, aceitar o inexplicável. A mãe de Yngrid ora sofria dores no coração, ora desmaios freqüentes, ora febres altíssimas, e até queda de cabelo. Era um mistério. Até que um dia, quando Yngrid fez dois anos, tão misteriosamente quanto como apareceu, a doença foi-se embora, mas levou a mulher com ela. E foi assim e por isso que ele decidiu sair da cidade onde viviam, afastar-se até dos parentes e amigos mais próximos, morar numa cidadezinha escondida, fugir daquela vida, daqueles dias de luto, cruéis e impiedosos.

Fernanda acabava de sair da aula de francês. Ainda meio na dúvida acerca “des conjugàisons”, mas certa e satisfeita com sua boa pronúncia, conquistada sem muito sacrifício. Orgulhava-se de como era sabida, esperta. Poderia aprender o idioma que quisesse, sempre fora boa em línguas, e em gramática. Na próxima semana, chegaria a tão esperada resposta da universidade francesa, na qual ela pedira admissão para continuar seus estudos. A família de Fernanda, ao contrário da de Yngrid, não sofrera nenhuma perda recente, e morava em Garrafão porque não tinha outra opção. O pai de Fernanda não tinha nem o Ensino Médio completo e a pouca renda que tinham vinha do emprego de revendedora de cosméticos da mãe de Fernanda. A jovem, portanto, não apenas orgulhava-se do alto conhecimento cultural, como enchia seus pais de orgulho e admiração, e constantemente fazia a promessa de levá-los para Paris. Garrafão era pequena demais para os sonhos de Fernanda. Ela já estava até pensando em como faria se fosse admitida: leria a carta na frente da igreja, no dia da apresentação de Natal e espalharia a sua alegria para todos, numa data que era tão fraternalmente celebrada em Garrafão. Seria o seu “Adeus”.

É claro que as duas garotas se conheciam, mas não eram especialmente amigas, pois não freqüentavam as mesmas aulas, nem os mesmos lugares e nem tinham muitos amigos em comum. Fernanda sabia que Yngrid era a menina mais rica da cidade, e que fazia aulas de dança, piano, artes plásticas, mas era só. Ninguém sabia nada da família de Yngrid, nem do por quê de mudarem-se para Garrafão, até o dia em que as coisas começaram a mudar.

Fernanda foi deixar a irmã mais nova, Marina, no colégio. Marina, deixe-me falar pra você, era uma menininha muito esperta e adorava imitar a irmã. Mas Marina não era igual à Fernanda, logicamente. Na verdade, elas quase não tinham semelhança alguma a não ser alguns poucos traços, que passavam quase despercebidos diante de todas as diferenças. Diferenças que, aliás, não se limitavam à aparência tão-somente, mas também à personalidade. Enquanto Fernanda era madura, responsánvel, doce e sonhadora, Marina era mimada, inconseqüente, faceira e só obedecia à irmã. Todo dia de manhã era a maior guerra pra que Marina fosse ao colégio, e tinha dias em que só Fernanda a fazia ir. Este era um desses dias. E foi justamente por causa de Marina, que se atrasou tanto, que Fernanda pôde ver Yngrid ir ao chão sozinha, meio que desmaiada, apenas há alguns passos de onde estava.

Fernanda saiu correndo, pensando em chamar uma ambulância, mas quando ia se colocar ao lado da menina, viu que ela já estava se levantando, ainda meio zonza, mas aparentemente bem.
- Você ta melhor? – perguntou Fernanda.
- To. Acho que to. Obrigada.
- Tem certeza? Fiquei tão assustada. Você não quer sentar? Talvez você esteja cansada.
- É, pode ser. Qual seu nome?
- Fernanda. Meu Deus, por um instante esqueci! Você é a Yngrid, a filha do medico, ele tem que dar uma olhada em você, sei lá, as pessoas não desmaiam assim, de cansaço. Pelo menos, não normalmente. E você ainda ta tão abatida, acho que a gente deve...
- Não precisa. Eu estou bem, de verdade. Meu pai é um homem muito ocupado, não gosta que eu o perturbe com bobagens. Não posso nem falar de doença nenhuma em casa, desde que minha mãe morreu. Doença, pra ele, sé existe no hospital. Um desmaiozinho desses não é motivo tanto estardalhaço. É que final de ano a quantidade de ensaios triplicam, e eu não comi nada hoje de manhã...
- Sim, mas você ainda nem chegou ao balé! Como pode estar tão cansada?
- É um cansaço acumulado. Venho sentindo muito isso ultimamente.
- Humm. Pode ser que não seja nada mesmo. Mas, mesmo assim, você tem que comer! E descansar! Lembro que há uns dois anos atrás, você era mais, não sei bem, corada, eu acho. Agora você me parece meio pálida.
- Fernanda, eu acabei de passar mal. É claro que to pálida. Você só está impressionada, só isso.
- E, tem razão.

E as duas conversaram ali um bom tempo, mas depois tiveram que honrar seus compromissos, de maneira que acabaram não se encontrando mais ao longo do dia. Yngrid gostou de fazer uma nova amiga e Fernanda, apesar do susto, simpatizou muito com Yngrid também. É claro que esta era meio estranha, tinha dias em que ficava o tempo todo na rua, e tinha dias em que ninguém a via em canto algum. Nem para o balé ela ia com freqüência, estava cada vez mais magra, fraca e pálida.

O pai de Yngrid começava a se preocupar e sofria ao reconhecer na filha, os mesmos sintomas que culminaram na estranha doença de sua mulher. Parecia que ele teria que passar por tudo outra vez. Será que há justiça nesse mundo? E então, poucos dias antes da Apresentação, descobriu-se que Yngrid sofria de uma doença rara de coração, uma doença irreversível, desconhecida. Algo parecido com um sopro no coração, mas não exatamente isso. Era como se, uma parte do coração da garota fosse feita de dor, uma dor forte e impiedosa, absolutamente desconhecida da ciência, inexplicável para todos.

A essa altura, Fernanda, que havia sido aceita na universidade francesa, tentava de todas as maneiras possíveis ajudar a amiga. Em vão. O destino de Yngrid não estava nas mãos de ninguém, e já estava mais que sacramentado: ela se encontraria com a mãe em breve. Fernanda, porém, não tinha como saber disso, e escreveu para a amiga uma espécie de carta: rápida, curta, direta, que dizia o seguinte:

“Quando tudo parecer ruim, lembre-se de que as coisas poderiam estar piores, e aceite as coisas como estão. Não desafie Deus, nem o Destino. Você ainda pode viver muito, e vai viver muito, eu sei que vai. Aqui, ou na França, estarei sempre torcendo por você, para que você supere todas essas dificuldades. Mesmo que hoje você não esteja tão feliz, lembre-se do quanto você já foi feliz, e imagine o quanto será, se não desistir de tudo agora. É só isso que eu te peço: não desista de você. Tenha força pra viver, tenha força pra lutar por você. A sua vida é o bem mais precioso e exclusivo que você tem. Não a entregue de bandeja pra uma doença que só quer acabar com ela. Um abraço, Fernanda”


O que aconteceu foi que Yngrid nem chegou a dançar nem a ler as palavras da amiga. Quando o pai foi entregar para a filha, deparou-se com a inevitável fatalidade. Yngrid havia morrido. Morreu por causa de alguma espécie de sopro no coração. O desespero, o remorso e a culpa tomaram conta do médico. Sua dor era, agora mais do que nunca, arrebatadora. Era tão grande que não cabia dentro dele mesmo. Olhou para o papel e, num gesto impensado, amassou a carta. Sentiu-se bem fazendo aquilo, assim como sentiu-se bem quando se jogou no chão e chorou copiosamente. Ele tinha que pensar no enterro, em tirar a filha dali, mas não conseguia. Ele não se sentia capaz de se mover, se sentia paralisado, amassado como a folha de papel. Não demorou muito a pensar em terminar com tudo da maneira mais fácil: cortaria os pulsos, se envenenaria ou qualquer outra coisa assim. Na verdade, o que ele queria era punir-se, de maneira bem dolorosa. Quem sabe assim ele não teria o castigo que merecia, por não saber diagnosticar esposa e filha? Por deixar que as duas morressem...

De repente, quis abrir a carta. Num pensamento um tanto insano, imaginou que era aquele pedaço de papel, e resolveu abrir a carta, como se, lendo o que estava escrito no papel, pudesse ler dentro de si mesmo. Leu inúmeras vezes o pequeno parágrafo de Fernanda, até criar coragem de se levantar, retirar a filha dali e decidir que viveria não apenas por sua esposa e por Yngrid, como também por Fernanda e, principalmente, para contrariar um pouco a doença maldita que devastou os corações das duas pessoas que ele mais amava.

Fernanda, assim que soube, foi ao velório. Mas não se demorou ali, era triste demais. Injusto demais. Deu um abraço no médico, que a agradeceu pelas palavras de apoio que seriam para a filha, mas acabaram ajudando a ele. Desejou a ela uma boa vida no exterior, e que ela jamais esquecesse de Yngrid. Fernanda garantiu as duas coisas e pediu apenas uma: que ele fosse feliz sem culpa. “O Senhor não é culpado. Não havia nada que alguém pudesse fazer. Pensemos em Yngrid como um anjo. E alegremo-nos por este anjo pousar em nossas vidas.”